MAL-ESTAR, LIBERDADE E AMOR NA POESIA DE ALEXANDRE O’NEILL

Naduska Mário Palmeira


1. Introdução

        Diante da poesia de Alexandre O’Neill, podemos nos recordar da questão já formulada por Eduardo Prado Coelho, qual seja: trata-se de uma poesia da impossibilidade. Mas qual seria essa impossibilidade se podemos, a partir dela, delimitar parâmetros de estudos, ainda que difíceis? Seria a impossibilidade, a nosso ver, de dentro dos limites impostos, daqueles parâmetros preestabelecidos, criar limites outros de interpretação.
        Em sua poética, ou conviria dizer prosa – que, aliás, tenta fugir ao máximo da literatura1 –, O’Neill trabalha com vários aspectos, dentre eles, a destruição de realidades estabelecidas, a subversão de regras da sociedade, da poesia, da moral, a busca do absoluto (inacessível; por isso a constante busca), o humor, a crítica, o jogo verbal... e começamos assim, uma enumeração – nada caótica – dos temas que podemos encontrar nos textos de O’Neill.
        Além dos temas anteriores, observamos ainda o que nos parece mais evidente na obra do autor, que é a ligação com o movimento surrealista – e todos aqueles provenientes desse Surrealismo –, o rompimento com o movimento, os elementos surreais que insistem em sua obra até o final. Desses elementos surreais, destacaremos alguns que nos serão base para a análise de sete poemas do autor. Tarefa difícil, posto que no universo O’Neill há tanto que se dizer, há tanto que se, indefinidamente, imaginar.
        Primeiro, encontramos na poesia do autor um certo mal-estar diante das instituições, do estabelecimento de julgamentos morais, sociais, uma reação contra o que Clara Rocha chamou de Poesia com “p” grande. A sua poesia é uma negação, é uma “anti-poesia”.
        Segundo, vemos uma busca constante por liberdade, busca essa que faz parte do universo surreal, uma busca que vai, na poesia de Alexandre O’Neill, desde a libertação da palavra até a libertação do homem (e uma é necessária para que a outra se alcance). Diz-nos Clara Rocha, em texto já mencionado, que “a libertação da palavra é, por ordem, a primeira. Com efeito, essa libertação é sinédoque da libertação do homem” (Rocha, s/d). Essa liberdade de que falamos traz, em sua essência, a capacidade de invenção, uma intervenção imaginativa, bem aos moldes do movimento surrealista. Trata-se da busca de uma literatura livre, assim, mais imaginativa, menos ligada a regras, ao tradicionalismo da poesia com “p” grande.
        Um terceiro e último ponto é o tema do amor. O “amour fou”. Aquele amor que é conseqüência da liberdade, o amor como possibilidade de desenvolver uma nova linguagem, de encontrar um ponto que contemple tanto o sonho quanto o real, ponto esse que seja a convergência da imaginação e do real, da síntese desses elementos surreais e reais.

Para contactar com a obra [de O’Neill] é preciso ‘amar primeiro’. (...) O traçado de seu caminho bio-bibliográfico ficaria muito incompleto se não reparássemos num percurso afectivo na obra de O’Neill, que vai desde o entusiasmo ao desengano, passando pelo divertimento, pela ironia e pelo humor negro (Rocha, s/d, p. 10-11).

        Percebemos, pois, que a sua poesia encontra-se sempre no limite, no último lugar possível de convergência dos opostos que levariam a uma síntese, a um ansiado absoluto. Para trabalharmos com esses elementos, selecionamos um estudo de S. Freud que nos ajudará a ligar os três elementos delimitados anteriormente (mal-estar, liberdade, amor) com as teorias do movimento surrealista e com as particularidades da poesia de O’Neill.

2. O MAL-ESTAR: “O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO” E “UM ADEUS PORTUGUÊS”

        O medo vai ter tudo. Não podemos pular para fora deste mundo. Isso equivale a dizer que se trata do sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um todo.

        Freud afirma que a civilização, ou a repressão imposta pela civilização, é, em grande parte, responsável pela nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retomássemos às condições primitivas. Essa afirmação toca em dois pontos significativos da poesia de O’Neill, quais sejam: primeiro, a consciência de que se em um país a ordem vigente é ditatorial, torna-se impossível realizar uma obra dentro das propostas do Surrealismo; segundo, o retorno ao olhar primeiro seria a possibilidade de relembrar o significado do lúdico (da arte naïve, por exemplo) e, dessa forma, da estruturação do discurso literário (jogo) como forma de se combater as repressões sociais e morais, e da tradição, no que tange à arte.
        Em “O poema pouco original do medo” (Abandono vigiado, 1960) podemos observar ambas as elaborações, tanto a luta contra o medo através de um discurso que insiste em falar do medo e quebrar o silêncio imposto, usando o jogo de palavras, a que chamamos inventário (uma técnica surrealista largamente utilizada por O’Neill), para se enumerar – ou colocar-se cara a cara com os motivos pelos quais se tem medo – em que lugares e em que aspectos nos deparamos com esse sentimento. Esse inventário é um jogo de palavras que visa a enumeração de realidades por vezes afastadas, aparentemente incompatíveis, mas que buscam a síntese pela sua junção dentro de um só corpo: o da poesia. Essa enumeração torna compatíveis elementos que aparentemente seriam incompatíveis num discurso isolado, e dentro de uma proposta surrealista, temos a busca pela convergência e pela síntese das coisas como forma de provocação, “de uma tentativa poética de reabilitação do real quotidiano” (Cuadrado, 1988, p. 49). Vejamos essa tentativa no texto de O’Neill,

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
(...)
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor...

        E segue-se no poema a enumeração de elementos que se unem com o objetivo de precipitar uma nova realidade (o medo há, mas pode-se lutar contra ele) e criticar a vulgaridade do quotidiano, o que é um ato de subversão. “Fantasmas na ópera” e “meninas exemplares”, por exemplo, não possuem relação semântica isoladamente, mas se associadas a um único sentimento, o do medo, como é o caso no poema, convergem para um só sentido, são ressemantizados e nivelados a um mesmo plano de significação, para encerrarem em si (dentro do corpo da enumeração) o sentido da luta, da reação, da subversão dos aspectos do medo. Diz-nos Freud que “somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas”. E não seria exatamente isso que O’Neill nos mostra através desse inventário? A procura de “prazer” diante do medo pelo contraste de elementos pouco prováveis de se encontrarem em um mesmo contexto.
        A percepção do medo e a consciência de que se pode exauri-lo através do discurso é uma percepção intelectual; uma percepção da qual, segundo Freud, não podemos pular para fora, pois que ela é parte do mundo, parte da civilização; mas sim, devemos demonstrar uma necessidade de posicionamento diante da repressão e procurar, através do discurso, neutralizar-lhe os efeitos.
        Essa percepção de que nos fala Freud pode surgir de um confronto do ego com um “exterior” estranho e ameaçador (é preciso deixar claro que não fazemos aqui uma redução do texto de Freud apenas à realidade ditatorial portuguesa, mas um paralelo que o próprio texto freudiano sustenta). A realidade portuguesa da época de O’Neill é estranha, é ameaçadora, posto que cerceia os direitos individuais. O Surrealismo, como um movimento revolucionário, luta, com palavras, pela liberdade e contra o mal-estar a que nos referimos. A obra de O’Neill pode ter o seu embrião na repressão, na consciência do tolhimento da liberdade, no confronto do eu com a realidade que lhe é imposta. Mas o discurso lhe é favorável, ou, ao menos, tenta, na sua impossibilidade, exteriorizar o medo para dele se afastar,

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

        Em “Um adeus português” (No reino da Dinamarca, 1958) observamos uma interdição da possibilidade de se permanecer surrealista numa realidade como a de Portugal salazarista. Poderíamos lembrar aqui do que se chamou a “palavra interdita”. Há nitidamente um manifesto anti-surrealista, à maneira surrealista, entretanto. É uma anunciação de que em Portugal não se pode viver aquela “aventura mental” proposta por Breton, pois que a própria sociedade não pode ser livre. Esse poema é dirigido a uma grande representante do Surrealismo francês e trata-se de uma “celebração já magoada, elegíaca, em jeito de despedida, ao grande amor” (Martinho, s/d, p.38), o próprio Surrealismo, personificado em Nora Mitrani.
        O Surrealismo, segundo Mário Cesariny, deve ser “Contra a adaptação do Homem numa máquina de defender pátrias e partidos, [faz uma proposta de] criação do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montando um cometa extremamente longo e fulgurante”.
        E, pode o homem ser “Homem-asa” em meio a uma ditadura? Não.

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser.

        Essa impossibilidade gera o que chamamos aqui de mal-estar, ou, usando palavras do poeta, gera “náusea”.
        Segundo afirma Freud,

É impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de institutos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à nossa obra científica [acrescentamos, também, obra poética] (...). Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um sentido. Não se faz isso impunemente.

        É muito grande a relação dessa afirmação freudiana com a poesia em questão. Temos o ponto da renúncia ao Surrealismo [o instinto primeiro], a insatisfação tanto diante da estética quanto da própria renúncia. A “frustração cultural” pode ser sentida em versos como,

Não podias ficar presa comigo/à pequena dor que cada um de nós/traz docemente pela mão/a esta pequena dor à portuguesa/tão mansa quase vegetal” ou “tu és da cidade aventureira/da cidade em que o amor encontra as suas ruas [e esta cidade não é Lisboa].

        Se o Surrealismo é uma experiência interior de conhecimento e de liberdade, o conhecimento da realidade em O’Neill se faz presente diante de Portugal: ele não se priva de construir em suas poesia a sua melancólica ironia, o seu fazer poético útil que não escapa ao mal-estar da sua época, exprimindo um sentimento coletivo como modo de representar essa situação sócio-política, tentando quebrar, assim, as barreiras que separavam a arte da realidade, o que é uma proposta do movimento surrealista. A poesia deve ser, finalmente, útil, mesmo que venha a refletir a náusea, o mal-estar.

3. A LIBERDADE: “ PELA VOZ CONTRAFEITA DA POESIA” E “O REVÓLVER DE TRAZER POR CASA”

Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século – LIBERDADE – deixa de ser mito para se tornar uma realidade visível que se procura com ânsia e desejo.
(Cuadrado, 1988: 53)

        A liberdade é o princípio básico do movimento surrealista e também da poesia de Alexandre O’Neill. Essa liberdade consiste, para os surrealistas, em “não pertencer a um partido”, em “criar seus próprios mitos, usando-os conforme sua necessidade e furor pessoais dentro de um meio em que por acaso existe”, consiste em existir sem limites, como uma “experiência interior (iluminação, convulsão, atitude moral ante a – e na – realidade) de conhecimento e liberdade” (referência). A liberdade Consiste, formalmente, na escrita automática, que é considerada o funcionamento real do pensamento fora de toda censura, segundo palavras de Perfecto Cuadrado.
        Particularmente, na poesia de O’Neill, a liberdade é também, em termos estruturais, a experimentação lingüística. O seu projeto é o da libertação total do homem e a libertação total da arte (da palavra), segundo Clara Rocha.

O que implica [a libertação]: primeiro, uma poesia de “intervenção”, exortando os homens a libertarem-se dos constrangimentos de toda a ordem que os tolhem e oprimem (...); segundo, a libertação da palavra de todas as formas de censura (...). A libertação da palavra é, por ordem, a primeira. Com efeito, essa libertação é sinédoque da libertação do homem.

        O poema “Pela voz contrafeita da poesia” (Tempo de fantasmas, 1951) pode ser considerado uma proposta de liberdade – poema mais uma vez dirigido ao Surrealismo – liberdade que reside no maravilhoso, na esperança, como se confirma nos versos seguintes, “Não digas o teu nome: ele é Esperança / vais até aos que sofrem sozinhos / à margem dos dias / e é a palavra que não escrevem”.
        Outro conceito de liberdade é proposto por Freud quando ele nos fala de “ilimitabilidade de um vínculo com o universo” ou de um “sentimento oceânico”. Esse sentimento oceânico poderia ser associado àquele desejo de sair do âmbito da realidade e empreender a “aventura mental (...) em busca de inesperadas revelações, de súbitos ‘sinais’ que o ‘acaso’ pudesse trazer” expressa por André Breton (referência). Alexandre O’Neill empreende essa aventura mental não só no âmbito da linguagem como também no conteúdo de sua obra. O uso de técnicas como o inventário ou a colagem é forma de exercer a liberdade ao nível da linguagem e a destruição de realidades preestabelecidas, a busca do absoluto, a subversão de valores no contexto da poesia, o humor, os usos de lugares-comuns são formas de articular um discurso livre de convenções, livre das influências do tradicionalismo literário. Observemos o excerto,

Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia.

        Todo o excerto é dirigido ao próprio Surrealismo, no que tange à impossibilidade que observamos no capítulo anterior, de ser surrealista em Portugal. Mas vemos, ainda, que o poema seja um rompimento com a estética e o ideal do movimento, os preceitos que regem o Surrealismo, quais sejam: a aventura mental, a imaginação, a busca da simplicidade da linguagem, a possibilidade de ser livre. Tudo o que é negado é, ao mesmo tempo, recuperado em pequenas pinceladas de imagens surreais que o “íngreme caminho” o obriga. O fragmento seguinte, que constrói imagens bastante surreais, é uma comprovação de que não foi possível para O’Neill romper definitivamente com o movimento,

Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mias bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo.

        A liberdade em O’Neill é algo que ultrapassa os limites da ameaça, do medo, da linguagem. Ela é expressa pela própria linguagem (lembremo-nos do inventário, da colagem, das rupturas sintáticas),

Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-las a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavras
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação.

        No fragmento acima, observamos as formas de liberdade às quais nos referimos, como: a tentativa, pela palavra, de desarticular o medo, falando de sua ameaça real, o desejo de ultrapassar os limites da imaginação e libertar os sonhos, o objetivo de dispor as coisas a seu favor, rompendo com o que oprime, buscando a síntese entre o que é real e o que é sonho.
        Assim, a fruição de que nos fala Freud é a libertação da imaginação, é a possibilidade de viver sem a censura mental, sem a repressão, e isto é o que busca o movimento surrealista, é o que busca, insistentemente, O’Neill: a liberdade do homem através da liberdade da palavra, da fruição da imaginação, a busca da satisfação através da “transmutação futura [de] dois estados aparentemente contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa espécie de realidade absoluta, de supra-realidade (...)” (Chipp. 1993: 419).
        No poema “O revólver de trazer por casa” (No reino da Dinamarca, 1958), observamos também a busca pela liberdade – expressa por outro tema que é recorrente na poesia de O’Neill, o do homem num duplo estatuto, o homem dado e o homem sonhado – desta vez a libertação do homem diante do mundo, diante do outro. O primeiro verso, “Querem fazer de mim o revólver de trazer por casa”, já é uma demonstração de que O’Neill quer abandonar o “homem dado” – o homem como querem que ele seja, o homem ligado a partidos e a códigos morais e sociais – o que ele considera uma forma de violência contra a individualidade, contra a liberdade. O próprio “revólver” é a imagem concreta desta violência.
        Segundo Freud, “o impulso de liberdade é (...) dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral”. Aqui, vemos uma luta travada entre o impulso da liberdade e as exigências morais e sociais.,

Fizeram já de mim um o revólver de trazer por casa,
Aquele que toda a gente, uma, duas vezes na vida,
Encosta por teatro a um ouvido
Que acaba por achar-se envergonhado.

Um bom revólver domesticado.

        O’Neill não é esse “homem dado”, ele defende sua reivindicação à liberdade individual. Finalmente, podemos concluir com o que nos fala Freud acerca da liberdade do indivíduo,

A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele tempo não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a estas restrições (...)

        O’Neill não aceita as restrições da civilização, ele tem em si o potencial para esta libertação individual,

Quem espera por mim não espera por mim
E talvez me encontre por um acaso distraído.
Mas no meu obsceno mostruário de gestos,
Guardo o mais obsceno
Para quando a ilusão se der...

4. O AMOR: “AGORA ESCREVO” E “O AMOR É O AMOR”

No auge do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e o objeto ameaça desaparecer.
Freud

(...) o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e à afirmação total de actuar livremente, de sermos os verdadeiros portadores do amor, da destruição, da surrealidade.
Mário Cesariny

        Além do mal-estar e da liberdade, o amor é um outro tema fundamental da poesia de O’Neill. Mas não o amor como nós o conhecemos, dotado de regras e códigos morais e sociais: trata-se do “amour fou”, o amor iniciático, além dos limites da racionalidade e do real, o amor, em consonância com o Surrealismo, como uma experiência interior, revelação, convulsão, imaginação, enfim, uma espécie de purificação.
        Resta-nos, agora, saber se a realização desse amor foi possível no Surrealismo português. Em meio às condições sociais impostas, devemos adiantar que a resposta é negativa. O meios para que se realizassem tanto o amor quanto a liberdade não foram propícios para os poetas portugueses, e foi preciso empreender uma fuga do real, uma revolta contra a impotência diante dos padrões vigentes.
        No poema “Agora escrevo” (No reino da Dinamarca, 1958) encontramos referências ao amor e essa é iniciada quando o poeta abre uma relação afetiva com o destinatário de sua poesia. Se é preciso amar primeiro, então, faz-se necessário também que se estabeleça um vínculo entre o eu e o outro, ou entre o “ego e o objeto” amado,

Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te, meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? (...)
Colecionamos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor.

        Com a abertura da comunicação entre eu e outro, estabelecemos o contato afetivo com a própria obra de O’Neill. Trata-se de uma percepção artística afetiva, de um amor que abre os caminhos da comunicação em meio à fúria, que é um sinal de libertação, que culmina em um vínculo mais íntimo entre o eu e o mundo/outro/obra.
        Ensina-nos Freud que “um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade intensa”. No Surrealismo, a busca pelo amour fou é a expressão não apenas de uma necessidade íntima intensa como também de uma necessidade humana de libertação.
        Muito mais nos diz Freud acerca do amor e, podemos enumerar aqui, algumas de suas teorias que se aplicam à busca empreendida por O’Neill. O amor seria um caminho para a conquista da felicidade, contra as opressões da civilização moderna e a “disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o ponto mais alto que o homem pode alcançar”. O’Neill busca trazer esse amor para a civilização, o amor que continua muito alto, como ele mesmo o afirma em uma quebra reflexiva que faz no poema,

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil: maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia (...)

        O amor é visto, assim, como algo fora da realidade humana, surreal, poderíamos dizer. Ao mesmo tempo, ele é maravilhoso, mas não parece fiel a sua relação com a civilização – para usar um termo freudiano –, o amor não nos é apresentado como “verde e simples,/Como uma árvore” (referência), que é como ele deveria ser. O amour fou desejado, perseguido, é, segundo palavras do nosso poeta, “como uma carta por abrir,/uma palavra por dizer”.
        O’Neill nos oferece uma boa “definição” para o amor, qual seja,

E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza, a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade! (grifos nossos)

        Joan Miró, em uma entrevista de 1936, diz que

O que importa é por nossa alma a nu. Pintura ou poesia se fazem como se faz amor: uma troca de sangue, um abraço total, sem nenhuma prudência, nenhuma proteção...

        Afirmamos, pois, que O’Neill busca o amor que lhe põe a alma a nu, o amor capaz de realizações, capaz de ser livre, o amor “necessidade e liberdade”. A realização, como finalidade da poesia, é buscada também através do amour fou: é necessário “realizar”, “pôr em prática sonhos” para no outro realizar esses sonhos (“Em ti/Via realizados os meus sonhos”).
        Finalmente, no poema “O amor é o amor” (Abandono vigiado, 1960) encontramos uma nova poética acerca do amor. O amor é o amor. Essa é a definição de O’Neill. Parece-nos uma síntese, uma necessidade de demonstrar o quão absoluto é esse sentimento. É absoluto, é imaginativo, é algo que oscila entre o sonho e a realidade. O amor é a libertação, é a junção do eu com o outro, do eu com o mundo, do eu com a humanidade. Diz-nos Freud,

Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo (...). Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais um, fazer um único (...)

        O auge do relacionamento amoroso no poema de O’Neill é a síntese: eu + outro que se transforma em espírito e calor,

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos – somos um? somos dois?... –
espírito e calor!

        Para que ocorra essa “troca”, essa transmutação dos seres amantes em calor e espírito, observamos que há um elemento indispensável: a liberdade. Não haver destino, medo e pudor são fatores essenciais para a realização desse amor, para a síntese do eu com o outro.
        Observamos também nesse poema a criação de uma imagem bem aos moldes do Surrealismo, “O meu peito encontra o teu peito,/cortando o mar, cortando o ar”. Essa é mais uma “aventura mental” a que nos remete a poesia de O’Neill.
        O amor pode realizar-se também no espaço do imaginário, “Vamos ficar os dois/a imaginar, a imaginar?...” Finalmente, observamos nessa “poética” do amour fou, a fusão de elementos tais como o desejo de desarticulação do medo (o medo da perda do amor, sobre o que nos fala Freud), a busca da libertação e a possibilidade de manter-se entre o que é real e o que é sonhado. Não saber o que há depois do amor, é jogar com as duas lógicas (análogas ao real e o sonho, respectivamente): a que se sabe, que “o amor é o amor”, e a que foge ao conhecimento humano, o questionamento, “e depois?”.

5. Conclusão

...não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos esses.
A. Maria Lisboa

        A partir da leitura proposta das poesias de O’Neill em consonância com o movimento surrealista e com “O mal-estar na civilização” de Freud, pudemos observar o imenso material que nos fornece a obra desse autor, no que diz respeito à riqueza temática, estrutural, formal.
        Alexandre O’Neill é um poeta que se envolve completamente em sua cultura, articulando (ou, desarticulando) em sua poesia os códigos sociais e morais vigentes em sua época. Se o que rege é a repressão, O’Neill fala do medo a fim de desocultá-lo, de desfazer a ameaça que ele provoca. Se o que se vive é o cerceamento de liberdades individuais, O’Neill busca incansavelmente a liberdade, não só a sua própria, como também a da obra, a dos homens, através da palavra/arte. E, finalmente, se o que é vigente é a falta do amor, ele quer um amor louco, livre, avassalador.
        Finalmente, todos esses aspectos fundem-se num só desejo: o desejo de liberdade, de transgredir a ordem, de empreender uma “aventura mental” em busca da realidade que se encontra entre o real e o sonho.
        Freud nos forneceu material precioso para essa análise, já que a poesia também é uma forma de “análise” da alma, da sociedade, do indivíduo. Finalizamos, pois, com palavras de Clara Rocha a respeito de Alexandre O’Neill e sua obra,

[trata-se] de uma poesia divertida, mas que incomoda, inventiva e muito bem enraizada numa tradição literária portuguesa (...) e que nos fala de um destino coletivo com o qual nos sentimos por força identificados.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

COELHO, Eduardo Prado. "A impossibilidade da poesia na poesia de Alexandre O'Neill". In: CUADRADO, Perfecto E. A única real tradição viva. Antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988.

FREUD, S. Obras completas. (cd-rom)

MARTINHO, Fernando J. B. Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50. Lisboa: Edições Colibri, 1996.

O'NEILL, Alexandre. Poesias completas. 1951/1981. s/l: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, s/d.

O'NEILL, Alexandre. Poesias completas. Int. Miguel Tamen. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.




1 Alexandre O’Neill mostra o sentido que ele dá à literatura da seguinte forma em suas poesias: “Prosaico, mas sem literatura, / sem o discursivo, sem a mistura, / de panfleto, notícia, ladainha.” Ou, ainda: “Que bem me tem feito a levedura / de cerveja! / Limpou-me a casposa brotoeja / e a literatura.”